domingo, 17 de junho de 2012

Não há santo que aguente...

Ao me inspirar na Sociedade Alternativa para escrever o blog, descobri mais um elemento interessante: o Imprimatur. Este foi um dos símbolos utilizados no selo da Sociedade Alternativa, escrito em letras góticas. Simbolizava a declaração oficial da Igreja Católica de que um trabalho era uma boa leitura conforme seus padrões e dogmas. Em latim, "imprimatur" significa "deixem-no ser impresso".


Fazendo uma analogia ao mundo da tradução, da época medieval para cá, digamos que o selo de qualidade de trabalhos escritos mudou um pouquinho, mas a marca do Imprimatur está aí, pois a tradução sempre esteve sujeita a censuras e críticas. Ewandro Magalhães, em sua obra “Sua majestade, o intérprete”, resume bem a questão: “Dizem que dois intérpretes só concordarão com uma coisa: que o trabalho de um terceiro é uma porcaria.” E assim gira a roda da tradução, infelizmente... Um ranço de alianças e injúrias que vem desde a época em que nosso "guerreiro" São Jerônimo, o santo padroeiro dos tradutores e respeitado intelectual da antiguidade, apresentou sua tradução da Bíblia para o latim.

Muito me agradou saber, ao ler Magalhães, que "Jerônimo pode ter sido santificado depois de morto, mas em vida foi dono de um temperamento irascível. A seu talento para as línguas correspondia uma habilidade não menor para envolver-se em confusões e colecionar adversários." Por outro lado, foi capaz de travar boas amizades com papas e senadores, que lhe encorajavam e apoiavam nas defesas mordazes contra acusações de infidelidade e perversão do original feitas por ilustres linguistas da época. Para isso, invocava até mesmo profetas e evangelistas, demonstrando como estes também fugiram à literalidade para transmitir suas mensagens. Todos os celeumas estão belamente registrados em correspondências, como a carta a Pamáquio.



Apesar de sabermos que as críticas construtivas são um manancial de aprendizado, uma crítica pejorativa, mal fundamentada ou uma ironia proposital podem ferir o espírito e o ego de qualquer tradutor que se preze. E, nessa hora, São Jerônimo ajuda: o "bicho pega", ainda que com palavras civilizadas!

A raiz dessa animosidade, mais uma vez, parece estar na falta de respeito com o trabalho alheio ou na falta de princípios éticos como a imparcialidade e a objetividade. Sabemos que a tradução é uma profissão de risco, pois precisamos interpretar e fazer escolhas o tempo todo, que não necessariamente seriam as mesmas de outro tradutor, do cliente ou do revisor, pois tais escolhas estão intimamente relacionadas à personalidade, à experiência e até mesmo aos valores de cada um. Das questões de estilo podemos chegar aos erros, do mais leves aos mais graves. Precisamos ter humildade para reconhecê-los e aprender com eles. Mas será que algum de nós nunca erra? Por que tentar evidenciar tanto o erro de um colega? Para recalcar os nossos próprios erros ou nos fazer parecer superiores? Ou para denegrir gratuitamente a imagem de outro profissional?

O silêncio diante de uma boa tradução e o escarcéu diante de uma má tradução somente reforçam esse ciclo vicioso. Uma briga de egos e línguas afiadas, com penas esvoaçantes para todos os lados, em que se perde muito tempo e se ganha até uns quilinhos a mais ou a menos por conta do estresse. No entanto, se aqui estamos e vamos "muito bem, obrigado", além de nosso comprometimento e competência, provavelmente estamos recebendo uma forcinha lá do nosso santinho. Para isso, preciso arrematar novamente com Ewandro:

“O legado de Jerônimo talvez seja maior que nós. Talvez não o possamos refutar. Talvez nos cumpra aceitar e admitir essa herança ambivalente de um santo e pecador. Talvez seja mesmo de sombra e luz o mundo dos intérpretes. Talvez seja impossível escolher apenas um lado da moeda. Ambivalente somos todos, na interpretação. Ingênuos e maliciosos, puros e ardilosos, a perfeita efígie de Jano, o deus romano de duas caras, a fitar o futuro e o passado simultaneamente, símbolo da mesma dualidade.”



Fonte: MAGALHÃES JR., Ewandro. Sua Majestade, o intérprete: O fascinante mundo da tradução simultânea. Parábola Editorial. Rio de Janeiro: 2010 (referências ao Capítulo “Guerra é paz”, pp. 167 – 183).

Um comentário:

  1. Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, também ilustra essa linha sutil em que também os revisores se equilibram constantamente em sua prática. Adorei o blog. ´Parabéns pelo nicho "bloguístico" inaugurado.

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